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Salette: um evento, uma mensagem, um movimento eclesial.

Pe Isidro Perin MS
ENCONTRO INTERNACIONAL DE LEIGOS SALETINOS
França 1 a 10 de setembro de 2011



1 - Salette: evento, símbolos, questionamentos:

No evento Salette, duas questões, aparentemente contraditórias, desafiam os seres humanos:
"Fazeis bem vossa oração, meus filhos?"
"Nunca vistes trigo estragado?".

Tais perguntas colocadas, por Maria, a Maximino e Melânia e, dirigidas a nós todos, nos remetem a duas realidades essenciais da vida humana: nossa relação com Deus, cultivada na oração e nossa relação com a materialidade econômico-social-política, expressa no pão cotidiano necessário à subsistência e à vida de cada ser humano.

Estas duas indagações de Maria, em sua Aparição, nos recordam as duas dimensões fundamentais da espiritualidade cristã: a contemplação da presença amorosa do Senhor e a ação transformadora do homem fundamentada na justiça e na solidariedade. Maria nos faz compreender que estas duas realidades se interpenetram. A mentalidade moderna costuma contrapor espírito e matéria. No hebraico bíblico há duas expressões que se completam: "RUAH = sopro de vida" e "shekinah = presença amorosa do Senhor".

"A palavra espiritualidade deriva de 'espírito' e, na mentalidade comum, 'espírito' se opõe à matéria... Entretanto, na linguagem bíblica, espírito não se opõe à matéria ou ao corpo... Opõe-se, sim, à carne (i.é., à fragilidade do que está destinado à morte); opõe-se à lei (i.é., a imposição, o medo, o castigo). Neste contexto semântico, o espírito significa vida, construção, força, ação, liberdade... O espírito de uma pessoa não é senão o melhor de sua vida: o que faz com que ela seja o que é, sustentando-a, impulsionando-a. O espírito de uma pessoa é o mais profundo do seu próprio ser: suas motivações últimas, seu ideal, sua utopia, sua paixão, sua mística pela qual vive e luta e com a qual contagia os outros" (1).

A mensagem de Maria, em Salette, a exemplo da bíblia, está construída sobre estes dois pilares: espírito, sopro divino em nossa vida e os bens da criação, dentre os quais o pão. Sucintamente elencamos algumas expressões da mensagem que tem profunda ressonância bíblica:

"Venham, meus filhos" "Venham, e vocês verão" (Jo. 1,39)
"Não tenhais medo" "Sou eu, não tenham medo" (Jo 6, 20)
"Aqui estou para vos contar " Eu anuncio a vocês a grande notícia, que será uma uma grande novidade" uma grande alegria para todo o povo" (Lc. 2, 10).

"Se meu povo não quiser "Quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas,
"se submeter" então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos" (2 Co. 15, 28).
"O braço do meu Filho" "Ele realiza proezas com seu braço" (Lc 1,51).
"O nome do meu Filho" "Maria deu à luz um Filho" (Mt. 1, 25).
"dei-vos seis dias para trabalhar, "No sétimo dia ele descansou de todo o seu trabalho" reservei-me o sétimo e nem este me (Gn. 2, 2) querem conceder."
"Se se converterem..." "Na conversão e na calma está a salvação de vocês, e a força de vocês consiste em confiar e ficar tranqüilos" (Is. 30, 15).
"Durante a quaresma vão ao "Não dêem aos cães o que é santo, nem atirem açougue como cães ". pérolas aos porcos; eles poderiam pisá-las com os pés e, virando-se, despedaçar vocês" (Mt. 7,6).
"Fazeis bem vossa oraçao..." "Jesus foi para a montanha a fim de rezar. E passou toda a noite em oração a Deus" (Lc. 6,12).
"Toma, meu filho, come pão..." "Jesus pegou os dois pães e o cinco peixes...(Mc 6, 40)
"Ide, meus filhos, comunicai isto "Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa Notícia a todo o meu povo". para toda a humanidade" (Mc. 6, 15).

Tais comparações deixam claro que "espírito" e "corpo" no ser humano se interpenetram formando uma unidade indissociável. O ser humano é um todo singular e único. Portanto, nossa espiritualidade e nosso carisma devem levar em conta esta realidade indissociável do ser humano.

Concluindo esta primeira parte eu diria que Maria, em Salette, sabe perscrutar os acontecimentos da mesma maneira que o fez na Palestina. Sabe dizer as "coisas de Deus" nas coisas da vida de seu povo. Em ambas, ela convoca a viver uma espiritualidade atenta aos sinais dos tempos. Espiritualidade que faz mergulhar nos acontecimentos e no cotidiano de nossas vidas, para discernir, no mundo atual, "as sementes do Verbo" e os apelos do Espírito. Tal espiritualidade nos habilita a fazer a experiência da fidelidade de Deus, o qual continua a realizar maravilhas em nossa fragilidade humana. Ela educa à escuta, à atenção ao que está acontecendo ao nosso redor, captando, com os olhos e o coração, para onde o espírito deseja conduzir-nos.

2 - Salette com a riqueza de seus símbolos, nos introduz na dinâmica do mistério e nos desafia a construir uma espiritualidade encarnada:

Salette, um evento e uma mensagem de cunho simbólico:

a)- O globo luminoso que envolve Maria e os videntes;
b)- As lágrimas que brotam dos olhos da Bela Senhora transformam-se em raios luminosos ao cruzarem os raios fulgurantes que brotam do Cristo pregado na cruz que ela carrega;
c)- As pesadas correntes, que estavam sobre seus ombros, símbolo de opressão, e de fechamento face à proposta de fraternidade e solidariedade oferecida pelo seu Filho, Jesus;
d)- As correntes de rosas, sobre os ombros, sobre a cabeça e nos pés, símbolo do amor, da vida construída para que a terra deixe de "gemer em dores de parto" e para que ela se transforme em um paraíso de irmãos;
e)- As vestes que ela usava, imitam as das mulheres camponesas da região que penam para alimentar e sarar seus filhos num tempo de carestia;
f)- A fonte de água que nunca deixou de jorrar no lugar da aparição recorda a fonte inesgotável da "água viva que jorra para a eternidade";
g)- A montanha é o lugar símbolo dos limites humanos e da presença de Deus;
h)- Os três momentos da aparição:

= Maria chorando sentada sobre "pedra dura" é a mãe da compaixão e do cuidado materno. Como à mãe que esgotou todas as palavras, só lhe restam as lágrimas...

= Maria, em pé, numa profunda intimidade com os dois humildes pastores, entre lágrimas e soluços, recorda que seus filhos, insensíveis às trágicas realidades da época, ("vós não fazeis caso") e indiferentes à presença amorosa de Deus em suas vidas ("eles profanam o nome de meu Filho"), ela lhes propõe uma radical mudança de vida ("Se se converterem as pedras e os rochedos se transformarão em montões de trigo e as batatas aparecerão semeadas nos roçados"); um mundo diferente é possível.

= Maria, resplandecente da luz que brota de seu Filho retorna ao céu indicando o definitivo destino luminoso de uma existência humana reconciliada e reconciliadora.

O fato e a mensagem da Salette, ricos em símbolos que vão além da reflexão e do entendimento racional, nos introduzem na dinâmica do mistério para ultrapassar as aparências e para identificar o essencial: Deus, presença amorosa, está no meio de nós e ao lado de cada ser humano tal qual ele é (relembrar o episódio da Terra de Coin).

Maria, em Salette, nos convoca a construir uma espiritualidade atenta aos sinais e símbolos para, através deles, penetrar no coração do mistério do Amor incondicional. Esta tarefa não é fácil na cultura pós-moderna na qual quase tudo é descartável e relativizado. Esta espiritualidade terá como características:

a)- valorizar a beleza ("Bela Senhora" na expressão de Maximino e Melânia), o silêncio, a contemplação, a adoração.
b)- recuperar, em nossas celebrações e pregações, o valor dos símbolos, que carregam no seu bojo significativa riqueza espiritual.
c)- contestar a banalização da vida e da morte, a perda dos valores evangélicos da justiça e da solidariedade, da fraternidade e da paz...

Podemos concluir esta segunda parte afirmando que o evento Salette, com sua rica simbologia, é portador de uma espiritualidade sólida centrada em Cristo presente na vida de todos quer, habitem eles a "terra de Coin" ou percorram os caminhos de Emaus. Tal Espiritualidade deverá iluminar a vida e a missão de todos religiosos saletinos e de todos os leigos saletinos. Esta espiritualidade exigirá constante aprofundamento e atualização para responder aos sinais dos tempos. Assim, desse rico itinerário espiritual, nascido da Aparição, poderemos auferir constantemente, coisas "novas e velhas".

3 - Salette: da mensagem centrada em Cristo à releitura carisma da reconciliação.

O contexto geral da aparição, i. é, as atitudes da Bela Senhora, sua mensagem, seus símbolos, o apelo à conversão, a situação do povo da época e sua resposta de vida cristã, a presença humilde e corajosa dos primeiros missionários sobre a montanha, as devoções que ali nasceram... induziu os peregrinos a sublinharem essa dimensão da fé: a reconciliação. A invocação marial saletina, proclamada por um peregrino anônimo dos inícios, expressa a dimensão teologal mais típica da Aparição: "Nossa Senhora da Salette, reconciliadora dos pecadores, rogai sem cessar por nós que recorremos a vós". A expressão, "Reconciliadora" atribuída a Maria, embora de uso restrito, era conhecida por alguns teólogos da Idade Média. O Papa Leão XIII, em 1879, ordenou a solene coroação da estátua da "Bela Senhora" denominada "Nossa Senhora Reconciliadora"; imagem esta colocada sobre o altar-mor da Basílica. Mais tarde, a Santa Sé aprovou o texto da Missa e do Ofício de "Nossa Senhora da Salette, Reconciliadora dos Pecadores".

Os Missionários saletinos se embeberam imediatamente da dinâmica da reconciliação, haurida da Aparição e sua mensagem, contempladas e anunciadas à luz do Evangelho e da reflexão teológica da época. O primeiro esboço da Regra da Congregação, em 1852, pede aos Missionários saletinos que sejam:

a)- "homens de oração", em união com a "Divina Advogada dos pecadores";
b)- "homens de zelo", "encarregados de trabalhar para despertar os pecadores de seu torpor";
c)- "homens de expiação", "permanentemente em condição de solicitar eficazmente com Maria, a graça e a misericórdia para os pobres pecadores".

Estes se definiram desde a primeira Regra de Vida, em 1858, como "Homens de oração, de penitência e de zelo". Estes três elementos: "oração, penitência e zelo" sinalizam para três relações fundamentais de nossa vida:

a)- relação com Deus através da oração, como abertura à vontade de Deus em união e a exemplo da "Bela Senhora";
b)- relação com os outros, cultivada no zelo, como expressão de amor aos irmãos;
c)- relação consigo mesmo, vivenciada na penitência, como desejo de superação das tendências egocêntricas do coração humano.

Esta trilogia foi lida e vivida à luz da "teologia da expiação" e das práticas de "reparação" vivenciadas, por vezes, pelas Confrarias de Nossa Senhora da Salette e ou/ por movimentos de "Reparação a Deus por causa das blasfêmias"..., típicas da época. Para simplificar, a "oração", a "penitência" e o "zelo" eram meios privilegiados para "expiar" os pecados dos homens, para "reparar" o mal que os mesmos causam a Deus e para "aplacar" a ira do Senhor. Símbolo disso é a frase dita pelo P. Giraud ao Mestre de noviços quando do seu ingresso o noviciado: "Considere-me como o barro, amasse-me como queres" ao que o mestre responde: "É preciso que te deixes modelar. Não compete à vítima discutir quanto aos meios empregados para conduzi-la à imolação de todo o seu ser "..." Renúncia, sacrifício, vida oferecida aos outros para a glória de Deus... Hóstia e vítima de expiação pelo sacrifício, pela oraçao e pelo amor" eram os pilares teológico-ascéticos da espiritualidade que animou nossos fundadores(6). Esta ascese embora inspirada no evangelho: "Se a semente lançada na terra não morrer, ela não produzirá fruto" levou a certos exageros e a uma concepção, muitas vezes, intimista, individualista e mesmo sacramentalista da Reconciliação e da prática da adoração do Santíssimo Sacramento sob o viés da expiação vitimalista (resgatar/pagar pelo sacrifício de uma vítima).

Ao longo do tempo, o apelo de Maria à conversão e as expressões que se sucederam: "Reconciliadora dos pecadores, oração, penitência e zelo" foram sendo relidas e reinterpretadas à luz da evolução teológico-pastoral da Igreja e, particularmente, do Vaticano II. A conversão é concebida como "metanoia, i. é. "mudança da mentalidade, de espírito, de atitudes... ; mudança essa que implica renúncia, paixão pelo Reino, doação de si mesmo. Conversão e reconciliação não são dois atos isolados, mas partes inseparáveis de um processo permanente e vivificante.

Os valores evangélicos da oração, da penitência e do zelo ("dom de si" (2), inerentes ao nosso carisma e à nossa espiritualidade, tornam-se "caminho de nossa conversao pessoal e comunitária, e igualmente o da nossa missão no mundo. Nós os vivemos num espírito de compaixão, de misericórdia, de comunhão, de solidariedade, sobretudo em relação aos pobres no seio dos quais somos chamados a ser um sinal do amor compassivo de Deus e da ternura materna da Virgem da Salette para com seu povo" (3).

Podemos concluir esta terceira parte dizendo que:

a)- O carisma da reconciliação relido à luz do evento Salette "engendra um modo de ser, um estilo de vida fraterna e uma estrutura própria a uma comunidade reconciliada e reconciliadora a serviço da missão eclesial" (4)...que nós, MS, queremos compartilhar com as demais congregações nascidas sob a inspiração da presença de Maria em Salette e, em especial, com as Irmãs de Nossa Senhora da Salette, com os leigos saletinos e com todas as pessoas às quais somos chamados servir. O patrimônio espiritual e carismático da Congregação tem aqui um enriquecimento imenso. Supera-se a concepção intimista, individualista e, mesmo sacramentalista da reconciliação. O horizonte da espiritualidade e do carisma da reconciliação se abre para o mundo inteiro.

b)- Face às exigências do mundo atual, os MS, as SNDS e os Leigos saletinos são "chamados a re-atualizar o carisma saletino num engajamento pessoal e comunitário em favor da paz, da justiça, do justo desenvolvimento, do respeito ao ambiente ecológico, do dialogo ecumênico e inter-religioso ... Apaixonados que somos, pelo Reino de Deus, nos entregamos à obra da libertação de nossos irmãos e irmãs em relação a todo o tipo de opressão e de todo o pecado pessoal e social, ajudando-os a se reconciliarem consigo mesmo, com os outros e com Deus "(5)".

c)- "Salette é mensagem de esperança" (7). Espero que este encontro desperte em nós uma nova paixão pelo carisma da reconciliação e pela espiritualidade saletina e sempre nova paixão pelo Reino de Deus como João Paulo II recomendou aos MS: "Desejo vivamente que vosso Capítulo estimule os membros do Instituto a tomarem uma renovada consciência de sua participação na missão reconciliadora da Igreja que está no coração de sua vocação missionária, ajudando, sem cessar, os cristãos a acolherem o perdão divino, sendo dele testemunhas em todas as nações" (8).

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Notas:
1)- Casaldaliga, Pedro e Vigil, José Maria, Espiritualidade da Libertação, Vozes, 1993.
2)- João Paulo II, Carta ao Capítulo Geral, Maio de 2000.
3)- Capítulo Geral, Roma, 2000, Decisão II.
4)- Capítulo Geral, Roma, 2000, Decisão II
5)- Capítulo Geral, Roma, 2000, Decisão II.
6)- Jaouen, Jean, La Salette au regard de l'Église, 1981, p.284-287.
7)- João Paulo II, Carta ao Bispo de Grenoble, no sesquicentenário da Aparição.
8)- João Paulo II, Carta ao Capítulo Geral, Maio de 2000.
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