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ENCONTRO INTERNACIONAL DE LEIGOS SALETINOS
França 1 a 10 de setembro de 2011

Como viver e testemunhar a mensagem da Salette em
nossa vida e em nossos engajamentos
P. Isidro Augusto Perin, MS

Introdução: Este título pode suscitar alguma perplexidade e certo embaraço:
a) Viver o quê e como?
b) Testemunhar o quê e como?
c) Viver e testemunhar onde e como para dar o justo valor às nossas diferenças culturais?

Levando em conta tais perguntas, eu lhes proponho, nesta conferência, uma reflexão sobre a mensagem da Salette a partir da expressão corrente no mundo saletino: « La Belle-Dame » (A Bela Senhora). Este atributo nos encaminha para alguns valores que marcam a reflexão teológica medieval e moderna: "Beleza", "Bondade", "Verdade". Eis alguns dos valores profundamente enraizados na mensagem da Salette que poderão nutrir nossa vida e autentificar nosso testemunho onde vivemos e atuamos enquanto Sal etinos (as) e Leigos (as) associados (as).

Esta intervenção terá quatro sessões:

1)- A beleza, a bondade e a verdade: o que entendemos por estas expressões ?
2)- A releitura da Mensagem da Salette a partir da beleza, da bondade e da verdade.
3)- A beleza, a bondade e a verdade, sinais de esperança.
4)- Algumas conclusões.

Esta exposição, partindo a mensagem de Maria em Salette, pretende, apenas, a identificação de certos valores a serem vividos e testemunhados tanto, pelos (as) saletinos (as) religiosos (as) ou leigos (as). O tema será proposto em quatro unidades, cada qual com uma pergunta para facilitar o aprofundamento. Isto possibilitará a apropriação do texto, em pequenos grupos, em quatro reuniões consecutivas com os leigos (as) saletinos (as) de cada país. O estudo em grupo poderá enriquecer ou adaptar o texto à realidade de cada país ou de cada cultura.

1 - A BELEZA, A BONDADE E A VERDADE: o que entendemos por estas expressões?

Os peregrinos que freqüentam este santuário e os leitores da literatura saletina se surpreendem por certas expressões, tais como, "a Bela Senhora, a beleza do sítio, a singeleza e o rigor da mensagem, a luminosidade do crucifixo, o encantamento de Maximino e Melânia face à experiência vivida a 19 de setembro de 1846...". O homem moderno, em seu desejo de descobrir a verdade sobre seu viver, sobre sua relação com o mundo, com os outros e com Deus, está à cata de ações luminosas. O que ele busca são formas de manifestar o Divino que o habita através da "Beleza" da "Bondade" e da "Verdade". "Bela" é toda ação que contribui para a evolução razoável da humanidade; é "Bom" todo aquele que luta, com todas as suas energias para respeitar a dinâmica da criação, para gerar a paz, para favorecer o ecumenismo e o diálogo intercultural e inter-religioso...; é "verdadeiro" aquele que identifica os sinais da multiforme ação divina em toda a criação e que abre uma janela para perscrutar o futuro definitivo da humanidade.
Quando nos cultivamos física, cultural e espiritualmente, nós transformamos o mundo para que ele revele a « Beleza" do Criador; quando nos amamos, nós reconciliamos o mundo para que ele seja a manifestação da "Bondade" daquele que nos amou antes de todos os tempos; quando nos unimos aos outros, seremos testemunhas da "verdade" segundo a qual todo o ser humano é convocado a viver como imagem e semelhança da Trindade Santa. Promover a virtude da "bondade" de todos os mortais é uma "bela" e maravilhosa ação, deixar-se seduzir pelo menor abandonado é acolher a "beleza" do Deus que o habita, deixar-se encantar pelo dom da natureza é reconhecer a "Beleza" do seu Criador. Deixar-se encantar pela "beleza" do coração humano e de todo o criado é a missão primeira daquele que deseja tecer solidamente o futuro da humanidade. "A via da beleza nos ajuda a descobrir a sentido mais genuíno da santidade afim de esta seja significativa ao mundo atual. "Viver no mundo sem ser do mundo" por amor a Deus é a significado mais profunda da santidade segundo a Bíblia"(1). A "beleza" é pois unidade porque ela conduz à comunhão com Deus. A beleza é aspiração à parusia porque ela possibilita a comunhão com aquele que nos engendrou desde sempre.
Os tempos atuais estão marcados por ideologias e utopias de cunho fortemente racionalista e materialista e, por conseqüência, a beleza foi sendo gradativamente eliminada, exilada e reduzida à bagatela sob o argumento de que ela nada acresce aos valores econômico-financeiros. Ela foi minimizada em nome da economia de mercado. Urs Von Balthazar, tendo tomado consciência do estrago que esta concepção causou à vida cristã e à santidade, retomou o tema da beleza e de seu significado no contexto moderno: "Num mundo sem beleza, o bem perdeu sua força de atração... Num mundo que se considera incapaz de valorizar a beleza, os argumentos em favor da verdade perdem a razão de existir" (2).
A teologia, depois de certo tempo de desencantamento, retoma a reflexão sobre o tema do mistério da beleza. Por vezes, a beleza foi reduzida à esfera da emoção, do subjetivismo e do arbitrário... Ao contrário, a beleza se constitui em via privilegiada para identificar, no tempo, a plenitude da existência humana que nos ajuda a não aceitar passivamente a miséria, a pobreza, a incomunicabilidade, a divisão, a guerra, o fatalismo... Não se trata de uma simples intuição consoladora e desestabilizadora... Vista nesta perspectiva, a beleza é um convite à imersão radical na historia da salvação, mistério que, não obstante nossa fragilidade humana, aponta para a perspectiva escatológica. A beleza é, portanto, uma fascinante imagem do mundo definitivo que ultrapassa o tempo presente.
Afinal, de qual beleza estamos falando? Sem dúvida, da beleza ascética e espiritual da Mensagem de Maria em Salette. O objetivo desta reflexão é suscitar o encantamento e a gratidão porque, na beleza ascética e espiritual, nós visualizamos a sabedoria da eterna beleza de Deus. A beleza, como um percurso ascético-espiritual, possibilita descobrir "significações inovadoras" num mundo que perdeu todos os pontos de referencia. Será que nós, MS, MSF, SNDS, LS, chamados a identificar e a procurar esta beleza da qual fala Pavel Florenskij : " A verdade revelada é amor. O amor é beleza". É "digno, justo e bom deixar que o amor de Deus invada todo nosso ser, afim de que ele seja, em nós, presença transformadora".
1ª pergunta: Como testemunhamos e vivemos, em nossa realidade, estes valores?

2 - RELEITURA DA MENSAGEM DA SALETTE A PARTIR DA BELEZA, DA BONDADE E DA VERDADE:
No evento Salette, podemos identificar alguns elementos que podem clarear a reflexão sobre este tema:
2.1 - O caráter maternal com o qual Maria faz sua opção face ao sofrimento de seu povo:

Salette é uma vila perdida na cadeia dos Alpes... Pelos meados do século XIX este lugar era desconhecido. Em seus doze vilarejos viviam cerca de seiscentas pessoas. Estas, empobrecidas por minguadas colheitas e pela seqüência de epidemias, ignoravam o que se passava além das montanhas... Será possível identificar sinais de beleza, de bondade e de verdade neste lugar inóspito, habitado, apenas, por ignorados sofredores? Nada de extraordinário se outrora já se dizia: "De Nazaré? Será que de lá poder sair algo de bom»?

Eis que a 19 de setembro de 1846, dois pastores, Maximino e Melânia, respectivamente com 11 e 14 anos de idade avistaram um globo de luz que girava sobre si mesmo "como se o sol tivesse ali caído". No centro desta envolvente claridade eles vêem uma mulher sentada, com a cabeça entre as mãos, os cotovelos postos sobre os joelhos, carregando uma cruz sobre o peito, nela o Cristo parecia vivo e dela irradiava uma forte luz que envolvia os três. Ela confia aos videntes uma mensagem, caminha alguns metros sobre a relva e, elevando-se, ela se "derrete na luz", segundo o testemunho de Maximino e Melânia.

Em suas primeiras palavras, ela recorda sua vocação materna: "Vinde, meus filhos, aqui estou para contar-vos uma grande novidade". Maria continua a viver a missão que, ao pé da cruz, recebera de seu Filho: "Mulher, eis aqui teu filho... Eis aqui tua mãe... e, a partir desta hora o discípulo a recebeu em sua casa" (4). Os meninos, à primeira vista, pensavam ter encontrado uma "mãe que seus filhos teriam maltratado e que viera à montanha para chorar". Somente após a assunção da "Bela senhora", Melânia exclamou: "Talvez, era uma grande santa", ao que ajuntou Maximino: "Se houvéramos sabido, poderíamos ter pedido que nos levasse com ela ao céu". A escassa formação dos garotos impediu que eles desvendassem a identidade da "Bela Senhora": "É a santa Virgem que os meninos viram, pois somente ela tem no céu um Filho que governa", exclama mais tarde a senhora Pra.

A mensagem da Salette contrasta com a pastoral da época que, por vezes, apresentava a imagem de um Deus exigente, sempre pronto a condenar e a pedir obras de reparação destinadas a aplacá-lo. Na verdade, as primeiras palavras de Maria aos dois jovens poderiam ser entendidas dessa maneira: "Se meu povo não quer se submeter, sou forçada a deixar cair o braço de meu Filho. É tão forte e tão pesado que não posso mais suportá-lo... Há tanto tempo que sofro por vós! Se quiser que meu Filho não vos abandone, sou incumbida de suplicá-lo sem cessar. E quanto a vós, nem fazeis caso!... Durante a quaresma, vão ao açougue como cães... »

Tais reprimendas, semelhantes a tantas outras em voga naquele tempo, parecem descaracterizar a missão que Maria recebeu ao pé da cruz, i. é., de acolher seus filhos desnorteados pelo pecado a fim de os gerar para uma vida nova segundo o desejo de seu Filho. Maria, em Salette, ao citar alguns dos pecados mais freqüentes daquele tempo, p.ex. (" a banalização do nome do Senhor, a profanação do domingo, o abandono da oração e da prática religiosa...) tenta identificar os motivos que tornam tão pesado o braço de seu Filho. A GS nos ajuda a reler tais reprimendas numa linguagem mais atual: "O homem se percebe dividido por causa do pecado. Toda a vida humana, individual ou coletiva, está marcada pela luta entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. Mais, nesta situação, o homem se considera incapaz, por si mesmo, de vencer, eficazmente, os assaltos do mal: cada um se sente aprisionado por diversas correntes (5).

Em sua Aparição, Maria ajuda Maximino e Melânia a ler, por outro ângulo, a história de seus contemporâneos para, nela, identificar os desafios e as provocações de Deus: "Se a colheita se estraga..., se o trigo virar pó..., se as batatinhas apodrecerem..., se as nozes caruncharem... se as uvas secarem... não é senão por vossa causa". Ela ajuda na reconstituição da memória: "Eu vo-lo mostrei no ano passado com as batatinhas. Vós nem fizestes caso!". Maria não só identifica os males correntes, mas desvela os comportamentos do seres humanos face aos seus sofrimentos: "Ao contrário, quando encontráveis batatinhas estragadas, juráveis abusando do nome de meu Filho". Em fazendo memória do que se passava, ela quer despertar a consciência da necessidade de ultrapassar o imobilismo, a apatia ou a revolta para assumir a responsabilidade para buscar uma mudança radical: "Se se converterem, as pedras e os rochedos se transformarão em montões de trigo, e as batatinhas serão plantadas nos roçados . Maria nos remete ao coração de nosso mundo e ao coração do evangelho: "O Reino de Deus está próximo, convertei-vos e crede na Boa Nova" (6)... "Buscai em primeiro lugar o Reino e a sua justiça, e o resto vos será dado por acréscimo" (7). Não se trata de alienar nossa liberdade, trata-se, sim, de "se submeter", i. é., de conformar-se à dinâmica do Cristo, de aceitar o amor gratuito de Deus e de o amar com todas as nossas energias e com todas as nossas forças.

A partir de seu rosto maternal, duas coisas surpreendentes requerem nossa atenção:

a)- O caráter eminentemente concreto de sua mensagem : Há uma estreita sintonia entre o modo de falar de Maria em Salette fazendo recurso ao dialeto rural, típico do século XIX e o da Bíblia. Ambos educam para identificar a presença de Deus no coração das realidades concretas do povo. Recordemos o episódio da terra de Coin. Maria ajuda a descobrir, através das tramas de nossa existência, a presença, sempre discreta, de Deus que "faz maravilhas" e que é sempre fiel à aliança que Ele teceu com seu povo."

b)- A força das lágrimas de uma mãe: Melânia afirma categoricamente: "Ela chorou durante todo o tempo em que conosco falava... Eu via suas lágrimas rolarem, caírem.. sem cessar.". João Paulo II oferece sua interpretação para tantas lágrimas: "As lágrimas de Maria em Salette são recordação das do Calvário e sinal de sua incessante ternura para seu povo: elas manifestam a impotência dela face à gravidade de nossa recusa de Deus e de nossa indiferença face às realidades históricas" (8). O abandono de Deus e a indiferença face às realidades terrestres indicam a necessidade de conversão: "Seu amor materno a conduz a prestar atenção às necessidades dos irmãos de seu Filho que peregrinam sobre esta terra e sempre sujeitos a enfrentar perigos e provas" (9). As lágrimas amorosas de Maria mostram que ela está atenta seja às indiferenças e aos pecados dos seres humanos, seja às suas esperanças e anseios históricos. Elas indicam até que ponto devemos tomar consciência do apelo à conversão! O caráter maternal com o qual Maria se apresenta em Salette confirma sua maternidade espiritual e assegura a realização da missão que ela recebera de seu Filho ao pé da cruz. Como mãe, Maria nos encaminha, sem cessar, à Palavra de Deus, à Boa Nova de Jesus Cristo, ao Evangelho, muitas vezes esquecido ou banalizado.
Eu acredito que as lágrimas de Maria, face ao sofrimento de seu povo, indicam que ela se preocupa com toda a pessoa que está em dificuldade porque ela continua a crer no dinamismo da fé e do amor. Ela vivenciou confiantemente, tanto as agruras do exílio no Egito e a consternação do Calvário quanto surpresa da ressurreição de seu Filho. Por isso ela pode testemunhar, em Salette, a beleza e a bondade do ser humano que decide retomar o caminho da compaixão, da solidariedade, do respeito à criação e da união íntima com Aquele que é Caminho a percorrer, Vida a partilhar e Verdade a professar na esperança.

2.2 - A pedagogia terra-a-terra com a qual Maria se dirige a Maximino e Melânia: Maria se adapta ao "patois" do meninos e os educa a ler os sinais dos tempos a partir da realidade que os envolve: "trigo estragado... batatinhas apodrecidas... nozes carunchadas... uva estragada... meninos mortos nos braços de suas mães...". Todos esses elementos eram familiares aos dois pastores. Eles conheciam também as reações de seus contemporâneos diante destas calamidades: abandono da prática religiosa e da oraçao, a profanação do Nome do Senhor... Sob o jugo destas realidades, muitos questionamentos emergem: "Se Deus é bom, porque permite todas estas coisas? Seria ele um Deus que se vinga das faltas dos seres humanos?". Para muitos, Deus é a causa de todos os males... Eis a razão pela qual os homens usam de modo inconveniente o Nome do Senhor, desrespeitam a quaresma, abandonam a missa dominical e a oraçao diária...

Maria, ao contrário, declara: « Se a colheita se estraga não é senão por vossa causa. Eu o mostrei no ano passado... e vós não fizestes caso". Em outras palavras, Maria convida os seres humanos a reexaminar cuidadosamente seus comportamentos, seu agir, suas convicções... "Pelos frutos se conhece a árvore » dizia Jesus ; «não é o que penetra no homem que envenena seu coração; o veneno que o habita envenena todo o ambiente que o rodeia", repetia uma peregrina do norte do Brasil por ocasião de sua visita ao santuário em 2007, depois de ter meditado a mensagem da Salette.

Maria, em Salette, se revela uma "pedagogia terra-a-terra" ao tentar educar os seres humanos para que eles descubram suas responsabilidades no presente de suas vidas. Maria não se apresenta como um objeto de devoção, de culto, de piedade... Antes ela se apresenta como uma mãe pedagoga que participa dos dramas, das angústias e das esperanças dos filhos de Deus dispersos neste "Vale de Lágrimas". Ela convida a identificar os desvios em nossas vidas que impedem uma vida da comunhão estimulante. Ela, como outrora em Caná, indica o segredo para superar as deficiências humanas: "Fazei tudo o que Ele vos disser".

Maria, em Salette, faz uso da pedagogia pastoral muito difundida, sobretudo após o Vaticano II: « VER, JULGAR, AGIR ». Tal pedagogia supõe três etapas interligadas: a tomada de consciência da realidade vivida, a avaliação da mesma à luz da Palavra de Deus e a proposição de ações para transformar a realidade a partir da "Boa Nova".

"Ver, julgar e agir", podem ser três pilares da ascese cristã. A conversao de que fala Maria em Salette pressupõe a vitória da verdade sobre a hipocrisia, da bondade sobre a irritabilidade, do amor sobre o ódio; breve, tudo isto pressupõe a coragem de se deixar encantar pela beleza da vocação de todo o ser humano chamado, durante sua peregrinação terrestre, a viver em Deus e por Deus.

2ª pergunta: O método "Ver, Julga, Agir" é um apelo à conversão de nossa prática pastoral. Como utilizarmos esse método em nossa prática pastoral?

2.3 - A imagem de Deus por ela revelada: "Nunca vistes trigo estragado, meus filhos?". "Não, Senhora". "Mas, tu, meu filho, tu deves tê-lo visto uma vez em Coin, com teu pai. O dono da roça disse a teu pai que fosse ver o trigo estragado. E, então, fostes ambos até lá, apanhastes duas ou três espigas entre as mãos e, amarrotando-as, tudo caiu em pó. Ao voltardes, quando estáveis a mais ou menos meia hora longe de Corps, teu pai te deu um pedaço de pão dizendo-te: 'Toma, meu filho, come pão neste ano ainda, pois não sei quem dele comerá no ano próximo se o trigo continuar assim!".

Eis o segredo da Salette: o senhor Giraud, desde muito tempo havia abandonado a prática sacramental e era freqüentador assíduo do bar à frente da igreja. Dele, ele fazia chacota dos que iam à missa. Quando Maximino recorda este episódio, ele, com ar de desprezo, diz: "meu filho, não é possível a Santa Virgem aparecer a você, conhecendo ela quem é seu pai". Mais, ele acorrenta o filho aos pés da mesa para que ele não andasse por ali a dizer coisas parecidas. Maximino retruca: "Papai, ela falou de você ». "O que falou ela? », repete o senhor Giraud. Maximino recorda ao pai o episódio da terra de Coin. O senhor Giraud não tendo podido dormir naquela noite, bem cedo, pede ao menino para levá-lo ao local da aparição. Em ali chegando, o rapaz conta, com detalhes, o que acontecera; o pai bebe da água da fonte e fica curado da asma. É o primeiro milagre da Salette. O senhor Giraud reorienta radicalmente sua vida e, a partir desse dia, participa diariamente da missa.

Para os contemporâneos da Aparição, habituados a conceber Deus como o responsável de todos os males que os atingem, Maria revela um Deus próximo que acompanha os seres humanos em todas as tramas de suas vidas; um Deus que participa da preocupação do pai de família para alimentar seu filho num tempo de carestia sem levar em conta que este o desprezava. Maria, em Salette, mostra um Deus que ama, com especial carinho, a ovelha perdida... Fazendo memória desse fato, Maria nos coloca face-a-face com um Deus, "rico em misericórdia", o qual está sempre atento aos detalhes de nossas vidas: nossas lutas, nossas quedas, nossas esperanças, nossas desilusões...

A memória que Maria faz desse evento em Coin nos coloca no coração do mistério de um Deus solidário com os homens no mais concreto de suas vidas. Deus está atento aos gestos, às ações e aos sinais de solidariedade, de mutualidade e de comunhão entre os humanos, cristãos ou não, assíduos à prática sacramental ou não... Deus, ali está como companheiro de jornada; Ele caminha, lado a lado, com os que buscam a perfeição e a santidade; Ele não abandona sequer aqueles que marcham sem se darem conta do valor evangélico de todos os gestos de atenção aos outros. Maria nos convida a uma transformação pessoal (conversão), à superação de nossas mesquinharias, à dissipação de nossos medos e de nossos preconceitos paralisantes. Maria, pela memória deste episódio, conseguiu modificar a visão que o senhor Giraud tinha do mundo, dos homens e de Deus para o capacitar a penetrar mais profundamente no conhecimento e na sabedoria de Pai. Ele compreende, agora, que cada pessoa tem sua dignidade e suas responsabilidades nesse mundo e que Deus anima todos os que se colocam ao serviço da vida de todos. Partindo de um gesto de solidariedade, simples e quase banal, Maria nos ensina que todo ato realizado com e por amor se converte em apelo para sermos "perfeitos como o Pai do céu é perfeito".

3ª pergunta: Deus e o homem possuem seu lugar na história da salvação. Como vivemos nós o mistério da aliança no concreto de nossa vida?

3 - A BELEZA, A BONDADE E A VERDADE, sinais de esperança.

Diversos questionamentos são apresentados pelos peregrinos: "Porque permite Deus a existência do mal no mundo? Como conciliar a "beleza do crucifixo luminoso", que Maria carrega em seu peito, com a humanidade, por vezes, cínica e cruel? Como compreender a afirmação de João Paulo II: "Salette é uma mensagem de esperança"?

Eu acredito que a beleza vislumbrada na ressurreição de Cristo se opõe ao horror do mal que não é senão a pura negação da beleza. Esta será sempre fragilizada lá onde triunfam as fraturas sociais, lá onde a violência e o ódio tomam o lugar do amor e lá onde a opressão substitui a justiça. É de atualidade a questão posta por Dostoevskij: "Que tipo de beleza salvará o mundo? "A beleza que salvará a humanidade é o amor-compaixão face ao sofrimento" retruca o agonizante Myskin (10).

O Cardeal Martini vai mais longe: «A partir do mistério pascal, Deus se revela Pai, Filho e Espírito Santo... Trata-se de entrar no mistério da Trindade Santa a partir do Filho... A Trindade não é uma teoria abstrata ou uma série de sílabas; mas, sim, Alguém que nos habita e que nos introduz no coração do Mistério divino. Partindo deste ponto de vista, é possível suscitar questionamentos sobre o mundo e a história, sem a preocupação de encontrar respostas teóricas imediatas. Antes, tais questionamentos possibilitam deixar-se embalar pela paixão do amor e da misericórdia com os quais a Trindade Santa criou o mundo e o recria, sempre de novo, para conduzi-lo à sua perfeição (11).

Maria em Salette desvenda a correlação entre beleza e seguimento de Jesus, entre beleza e redenção. Segundo a Bíblia, "bela" é a pessoa que acolhe e vive a Palavra de Deus. Jesus é o "mais belo dentre os filhos de Adão" porque ele obedece constantemente à vontade do Pai: "Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar sua obra" (12)... , "aquele que me enviou está comigo; ele não me deixará sozinho porque eu faço sempre o que lhe agrada" (13). Maria é a "mais bela dentre as mulheres" (14) porque o seu SIM a Deus foi uma constante em sua vida (15). É como tal que Maria se apresenta em Salette: sempre pronta para cumprir a vontade de seu Filho e a nos recordar que devemos aceitar as exigências do Evangelho. A devoção marial se transforma em uma oportunidade de se deixar seduzir pela beleza espiritual manifestada pela luz que brota do Crucificado que ela carrega sobre seu peito.

É verdade que a compreensão que, muitas vezes, temos da Cruz de Cristo e daquelas de nossas vidas que nos aprisionam numa lógica de morte e de destruição e nos fecham na espiral da impotência e da ausência de significações... A cruz luminosa é apelo para identificar, nas lutas pela libertação das escravidões presentes em nosso mundo, os raios de esperança e as correntes de pequenas luzes que iluminam a vocação de todos os homens para viver, em Deus e por Deus, o amor para com todos os seres humanos.

4 ª pergunta: Quais são os sinais de esperança que podemos suscitar a partir do evento e da mensagem da Salette?

4 -ALGUMAS CONCLUSÕES:

4.1) – A beleza e a Bondade irradiadas por Maria junto a Jesus, a José e ao povo de seu tempo, atestam a verdade de sua intimidade com Deus e de seu amor maternal para com todas as gerações. Em sua Aparição, ela nos convida a valorizar as coisas comuns de tal modo que os comportamentos simples e humildes de nossa história se transformam em janela aberta para o horizonte de Deus: horizonte aberto para as realidades de nosso tempo para as acolher e para as transfigurar para a eternidade.

4.2)- A personalidade de Maria, com suas ações, suas preces, suas palavras..., em Nazaré, em Jerusalém, em Salette, em Lourdes, em Fátima... está sempre centrada no Cristo. Ontem, hoje e sempre, ela exorta à perseverança, à alegria e à esperança: "Bendita és tu que acreditaste porque, em ti, vai acontecer o que o Senhor te prometeu" (16). Por seus atos, seu silêncio, suas palavras, seu sofrimento... Ela fez de Cristo a razão do seu viver e proclamou que Ele é fonte de esperança para os que o buscam. Esta certeza permitiu a João Paulo II afirmar que "Salette é uma mensagem de esperança" (17). O povo de Deus, muitas vezes desencantado pela realidade que o cerca, continua a proclamar que Maria é o mais convincente exemplo da mulher capaz de acreditar, contra toda esperança, na realização das promessas de Deus. Maria, toda bela, nos ajuda a descobrir o sentido mais profundo da santidade e da fidelidade sem falhas; seu agir não é senão bondade porque ela se revela uma mãe compassiva face aos pecados e face aos sofrimentos de todos os irmãos de seu Filho; sua oração e seu agir constituem-se na mais genuína expressão do seu "SIM" à vontade de Deus.

4.3)- Ao longo do tempo e, hoje ainda, pode-se constatar que homens e mulheres de todas as raças e de todos os horizontes culturais, a partir da mensagem da Salette, sentem-se chamados a re-descobrir, em seu Filho Jesus, o valor da Beleza que santifica, da Bondade que gera comunhão e da verdade que conduz à submissão amorosa ao Pai. Estes valores permitirão aos homens adentrar na aventura de percorrer caminhos de conversão, de aprofundamento da fé, de descoberta do dinamismo quotidiano para discernir, sempre de novo, as motivações de seu engajamento, com e para o Cristo, a serviço de "todo homem e do homem todo".

NOTAS
1)- Bruno Forte, Santità Trinitaria del Sacerdote, Conférence au Congrès Sacerdotale, Malta Octobre, 2004.
2)- H.U. Von Balthazar, La percepzione della forma; una estética teológica, Jaca Book, Melado, 1975, p. 11.
3)- P. Florenskij, Amore e Bellezza, in Cristianesimo e bellezza)
4)- Cf. Jn 19, 25-27).
5)- Gaudium et Spes, n. 13.
6)- Mc 1, 15
7)- Mt 6, 33
8)- Jean Paul II, Lettre du 150ème anniversaire de l'Apparition de La Salette.
9)- Lumen Gentium, n° 62
10-Cf. F. Dotoesvski, L'Idiota, Milano 1998, p. 645.
11)- C. M. Martini, Quale bellezza salverà il mondo? Lettera Pastorale 1999-2000, Centro Ambrosiano, Milano 1999, p. 21-22.
12)- Jean 4, 34
13)- Jean 8, 29).
14)- Cantiques 1,8)
15)- Luc 1, 38; 8, 21; 11, 28).
16)- Luc 1, 45.
17)- Jean Paul II, Lettre du 150ème anniversaire de l'Apparition de La Salette.
Pe Isidro Perin MS
ENCONTRO INTERNACIONAL DE LEIGOS SALETINOS
França 1 a 10 de setembro de 2011



1 - Salette: evento, símbolos, questionamentos:

No evento Salette, duas questões, aparentemente contraditórias, desafiam os seres humanos:
"Fazeis bem vossa oração, meus filhos?"
"Nunca vistes trigo estragado?".

Tais perguntas colocadas, por Maria, a Maximino e Melânia e, dirigidas a nós todos, nos remetem a duas realidades essenciais da vida humana: nossa relação com Deus, cultivada na oração e nossa relação com a materialidade econômico-social-política, expressa no pão cotidiano necessário à subsistência e à vida de cada ser humano.

Estas duas indagações de Maria, em sua Aparição, nos recordam as duas dimensões fundamentais da espiritualidade cristã: a contemplação da presença amorosa do Senhor e a ação transformadora do homem fundamentada na justiça e na solidariedade. Maria nos faz compreender que estas duas realidades se interpenetram. A mentalidade moderna costuma contrapor espírito e matéria. No hebraico bíblico há duas expressões que se completam: "RUAH = sopro de vida" e "shekinah = presença amorosa do Senhor".

"A palavra espiritualidade deriva de 'espírito' e, na mentalidade comum, 'espírito' se opõe à matéria... Entretanto, na linguagem bíblica, espírito não se opõe à matéria ou ao corpo... Opõe-se, sim, à carne (i.é., à fragilidade do que está destinado à morte); opõe-se à lei (i.é., a imposição, o medo, o castigo). Neste contexto semântico, o espírito significa vida, construção, força, ação, liberdade... O espírito de uma pessoa não é senão o melhor de sua vida: o que faz com que ela seja o que é, sustentando-a, impulsionando-a. O espírito de uma pessoa é o mais profundo do seu próprio ser: suas motivações últimas, seu ideal, sua utopia, sua paixão, sua mística pela qual vive e luta e com a qual contagia os outros" (1).

A mensagem de Maria, em Salette, a exemplo da bíblia, está construída sobre estes dois pilares: espírito, sopro divino em nossa vida e os bens da criação, dentre os quais o pão. Sucintamente elencamos algumas expressões da mensagem que tem profunda ressonância bíblica:

"Venham, meus filhos" "Venham, e vocês verão" (Jo. 1,39)
"Não tenhais medo" "Sou eu, não tenham medo" (Jo 6, 20)
"Aqui estou para vos contar " Eu anuncio a vocês a grande notícia, que será uma uma grande novidade" uma grande alegria para todo o povo" (Lc. 2, 10).

"Se meu povo não quiser "Quando todas as coisas lhe tiverem sido submetidas,
"se submeter" então o próprio Filho se submeterá àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos" (2 Co. 15, 28).
"O braço do meu Filho" "Ele realiza proezas com seu braço" (Lc 1,51).
"O nome do meu Filho" "Maria deu à luz um Filho" (Mt. 1, 25).
"dei-vos seis dias para trabalhar, "No sétimo dia ele descansou de todo o seu trabalho" reservei-me o sétimo e nem este me (Gn. 2, 2) querem conceder."
"Se se converterem..." "Na conversão e na calma está a salvação de vocês, e a força de vocês consiste em confiar e ficar tranqüilos" (Is. 30, 15).
"Durante a quaresma vão ao "Não dêem aos cães o que é santo, nem atirem açougue como cães ". pérolas aos porcos; eles poderiam pisá-las com os pés e, virando-se, despedaçar vocês" (Mt. 7,6).
"Fazeis bem vossa oraçao..." "Jesus foi para a montanha a fim de rezar. E passou toda a noite em oração a Deus" (Lc. 6,12).
"Toma, meu filho, come pão..." "Jesus pegou os dois pães e o cinco peixes...(Mc 6, 40)
"Ide, meus filhos, comunicai isto "Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa Notícia a todo o meu povo". para toda a humanidade" (Mc. 6, 15).

Tais comparações deixam claro que "espírito" e "corpo" no ser humano se interpenetram formando uma unidade indissociável. O ser humano é um todo singular e único. Portanto, nossa espiritualidade e nosso carisma devem levar em conta esta realidade indissociável do ser humano.

Concluindo esta primeira parte eu diria que Maria, em Salette, sabe perscrutar os acontecimentos da mesma maneira que o fez na Palestina. Sabe dizer as "coisas de Deus" nas coisas da vida de seu povo. Em ambas, ela convoca a viver uma espiritualidade atenta aos sinais dos tempos. Espiritualidade que faz mergulhar nos acontecimentos e no cotidiano de nossas vidas, para discernir, no mundo atual, "as sementes do Verbo" e os apelos do Espírito. Tal espiritualidade nos habilita a fazer a experiência da fidelidade de Deus, o qual continua a realizar maravilhas em nossa fragilidade humana. Ela educa à escuta, à atenção ao que está acontecendo ao nosso redor, captando, com os olhos e o coração, para onde o espírito deseja conduzir-nos.

2 - Salette com a riqueza de seus símbolos, nos introduz na dinâmica do mistério e nos desafia a construir uma espiritualidade encarnada:

Salette, um evento e uma mensagem de cunho simbólico:

a)- O globo luminoso que envolve Maria e os videntes;
b)- As lágrimas que brotam dos olhos da Bela Senhora transformam-se em raios luminosos ao cruzarem os raios fulgurantes que brotam do Cristo pregado na cruz que ela carrega;
c)- As pesadas correntes, que estavam sobre seus ombros, símbolo de opressão, e de fechamento face à proposta de fraternidade e solidariedade oferecida pelo seu Filho, Jesus;
d)- As correntes de rosas, sobre os ombros, sobre a cabeça e nos pés, símbolo do amor, da vida construída para que a terra deixe de "gemer em dores de parto" e para que ela se transforme em um paraíso de irmãos;
e)- As vestes que ela usava, imitam as das mulheres camponesas da região que penam para alimentar e sarar seus filhos num tempo de carestia;
f)- A fonte de água que nunca deixou de jorrar no lugar da aparição recorda a fonte inesgotável da "água viva que jorra para a eternidade";
g)- A montanha é o lugar símbolo dos limites humanos e da presença de Deus;
h)- Os três momentos da aparição:

= Maria chorando sentada sobre "pedra dura" é a mãe da compaixão e do cuidado materno. Como à mãe que esgotou todas as palavras, só lhe restam as lágrimas...

= Maria, em pé, numa profunda intimidade com os dois humildes pastores, entre lágrimas e soluços, recorda que seus filhos, insensíveis às trágicas realidades da época, ("vós não fazeis caso") e indiferentes à presença amorosa de Deus em suas vidas ("eles profanam o nome de meu Filho"), ela lhes propõe uma radical mudança de vida ("Se se converterem as pedras e os rochedos se transformarão em montões de trigo e as batatas aparecerão semeadas nos roçados"); um mundo diferente é possível.

= Maria, resplandecente da luz que brota de seu Filho retorna ao céu indicando o definitivo destino luminoso de uma existência humana reconciliada e reconciliadora.

O fato e a mensagem da Salette, ricos em símbolos que vão além da reflexão e do entendimento racional, nos introduzem na dinâmica do mistério para ultrapassar as aparências e para identificar o essencial: Deus, presença amorosa, está no meio de nós e ao lado de cada ser humano tal qual ele é (relembrar o episódio da Terra de Coin).

Maria, em Salette, nos convoca a construir uma espiritualidade atenta aos sinais e símbolos para, através deles, penetrar no coração do mistério do Amor incondicional. Esta tarefa não é fácil na cultura pós-moderna na qual quase tudo é descartável e relativizado. Esta espiritualidade terá como características:

a)- valorizar a beleza ("Bela Senhora" na expressão de Maximino e Melânia), o silêncio, a contemplação, a adoração.
b)- recuperar, em nossas celebrações e pregações, o valor dos símbolos, que carregam no seu bojo significativa riqueza espiritual.
c)- contestar a banalização da vida e da morte, a perda dos valores evangélicos da justiça e da solidariedade, da fraternidade e da paz...

Podemos concluir esta segunda parte afirmando que o evento Salette, com sua rica simbologia, é portador de uma espiritualidade sólida centrada em Cristo presente na vida de todos quer, habitem eles a "terra de Coin" ou percorram os caminhos de Emaus. Tal Espiritualidade deverá iluminar a vida e a missão de todos religiosos saletinos e de todos os leigos saletinos. Esta espiritualidade exigirá constante aprofundamento e atualização para responder aos sinais dos tempos. Assim, desse rico itinerário espiritual, nascido da Aparição, poderemos auferir constantemente, coisas "novas e velhas".

3 - Salette: da mensagem centrada em Cristo à releitura carisma da reconciliação.

O contexto geral da aparição, i. é, as atitudes da Bela Senhora, sua mensagem, seus símbolos, o apelo à conversão, a situação do povo da época e sua resposta de vida cristã, a presença humilde e corajosa dos primeiros missionários sobre a montanha, as devoções que ali nasceram... induziu os peregrinos a sublinharem essa dimensão da fé: a reconciliação. A invocação marial saletina, proclamada por um peregrino anônimo dos inícios, expressa a dimensão teologal mais típica da Aparição: "Nossa Senhora da Salette, reconciliadora dos pecadores, rogai sem cessar por nós que recorremos a vós". A expressão, "Reconciliadora" atribuída a Maria, embora de uso restrito, era conhecida por alguns teólogos da Idade Média. O Papa Leão XIII, em 1879, ordenou a solene coroação da estátua da "Bela Senhora" denominada "Nossa Senhora Reconciliadora"; imagem esta colocada sobre o altar-mor da Basílica. Mais tarde, a Santa Sé aprovou o texto da Missa e do Ofício de "Nossa Senhora da Salette, Reconciliadora dos Pecadores".

Os Missionários saletinos se embeberam imediatamente da dinâmica da reconciliação, haurida da Aparição e sua mensagem, contempladas e anunciadas à luz do Evangelho e da reflexão teológica da época. O primeiro esboço da Regra da Congregação, em 1852, pede aos Missionários saletinos que sejam:

a)- "homens de oração", em união com a "Divina Advogada dos pecadores";
b)- "homens de zelo", "encarregados de trabalhar para despertar os pecadores de seu torpor";
c)- "homens de expiação", "permanentemente em condição de solicitar eficazmente com Maria, a graça e a misericórdia para os pobres pecadores".

Estes se definiram desde a primeira Regra de Vida, em 1858, como "Homens de oração, de penitência e de zelo". Estes três elementos: "oração, penitência e zelo" sinalizam para três relações fundamentais de nossa vida:

a)- relação com Deus através da oração, como abertura à vontade de Deus em união e a exemplo da "Bela Senhora";
b)- relação com os outros, cultivada no zelo, como expressão de amor aos irmãos;
c)- relação consigo mesmo, vivenciada na penitência, como desejo de superação das tendências egocêntricas do coração humano.

Esta trilogia foi lida e vivida à luz da "teologia da expiação" e das práticas de "reparação" vivenciadas, por vezes, pelas Confrarias de Nossa Senhora da Salette e ou/ por movimentos de "Reparação a Deus por causa das blasfêmias"..., típicas da época. Para simplificar, a "oração", a "penitência" e o "zelo" eram meios privilegiados para "expiar" os pecados dos homens, para "reparar" o mal que os mesmos causam a Deus e para "aplacar" a ira do Senhor. Símbolo disso é a frase dita pelo P. Giraud ao Mestre de noviços quando do seu ingresso o noviciado: "Considere-me como o barro, amasse-me como queres" ao que o mestre responde: "É preciso que te deixes modelar. Não compete à vítima discutir quanto aos meios empregados para conduzi-la à imolação de todo o seu ser "..." Renúncia, sacrifício, vida oferecida aos outros para a glória de Deus... Hóstia e vítima de expiação pelo sacrifício, pela oraçao e pelo amor" eram os pilares teológico-ascéticos da espiritualidade que animou nossos fundadores(6). Esta ascese embora inspirada no evangelho: "Se a semente lançada na terra não morrer, ela não produzirá fruto" levou a certos exageros e a uma concepção, muitas vezes, intimista, individualista e mesmo sacramentalista da Reconciliação e da prática da adoração do Santíssimo Sacramento sob o viés da expiação vitimalista (resgatar/pagar pelo sacrifício de uma vítima).

Ao longo do tempo, o apelo de Maria à conversão e as expressões que se sucederam: "Reconciliadora dos pecadores, oração, penitência e zelo" foram sendo relidas e reinterpretadas à luz da evolução teológico-pastoral da Igreja e, particularmente, do Vaticano II. A conversão é concebida como "metanoia, i. é. "mudança da mentalidade, de espírito, de atitudes... ; mudança essa que implica renúncia, paixão pelo Reino, doação de si mesmo. Conversão e reconciliação não são dois atos isolados, mas partes inseparáveis de um processo permanente e vivificante.

Os valores evangélicos da oração, da penitência e do zelo ("dom de si" (2), inerentes ao nosso carisma e à nossa espiritualidade, tornam-se "caminho de nossa conversao pessoal e comunitária, e igualmente o da nossa missão no mundo. Nós os vivemos num espírito de compaixão, de misericórdia, de comunhão, de solidariedade, sobretudo em relação aos pobres no seio dos quais somos chamados a ser um sinal do amor compassivo de Deus e da ternura materna da Virgem da Salette para com seu povo" (3).

Podemos concluir esta terceira parte dizendo que:

a)- O carisma da reconciliação relido à luz do evento Salette "engendra um modo de ser, um estilo de vida fraterna e uma estrutura própria a uma comunidade reconciliada e reconciliadora a serviço da missão eclesial" (4)...que nós, MS, queremos compartilhar com as demais congregações nascidas sob a inspiração da presença de Maria em Salette e, em especial, com as Irmãs de Nossa Senhora da Salette, com os leigos saletinos e com todas as pessoas às quais somos chamados servir. O patrimônio espiritual e carismático da Congregação tem aqui um enriquecimento imenso. Supera-se a concepção intimista, individualista e, mesmo sacramentalista da reconciliação. O horizonte da espiritualidade e do carisma da reconciliação se abre para o mundo inteiro.

b)- Face às exigências do mundo atual, os MS, as SNDS e os Leigos saletinos são "chamados a re-atualizar o carisma saletino num engajamento pessoal e comunitário em favor da paz, da justiça, do justo desenvolvimento, do respeito ao ambiente ecológico, do dialogo ecumênico e inter-religioso ... Apaixonados que somos, pelo Reino de Deus, nos entregamos à obra da libertação de nossos irmãos e irmãs em relação a todo o tipo de opressão e de todo o pecado pessoal e social, ajudando-os a se reconciliarem consigo mesmo, com os outros e com Deus "(5)".

c)- "Salette é mensagem de esperança" (7). Espero que este encontro desperte em nós uma nova paixão pelo carisma da reconciliação e pela espiritualidade saletina e sempre nova paixão pelo Reino de Deus como João Paulo II recomendou aos MS: "Desejo vivamente que vosso Capítulo estimule os membros do Instituto a tomarem uma renovada consciência de sua participação na missão reconciliadora da Igreja que está no coração de sua vocação missionária, ajudando, sem cessar, os cristãos a acolherem o perdão divino, sendo dele testemunhas em todas as nações" (8).

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Notas:
1)- Casaldaliga, Pedro e Vigil, José Maria, Espiritualidade da Libertação, Vozes, 1993.
2)- João Paulo II, Carta ao Capítulo Geral, Maio de 2000.
3)- Capítulo Geral, Roma, 2000, Decisão II.
4)- Capítulo Geral, Roma, 2000, Decisão II
5)- Capítulo Geral, Roma, 2000, Decisão II.
6)- Jaouen, Jean, La Salette au regard de l'Église, 1981, p.284-287.
7)- João Paulo II, Carta ao Bispo de Grenoble, no sesquicentenário da Aparição.
8)- João Paulo II, Carta ao Capítulo Geral, Maio de 2000.
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